quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

TORTO ARADO. De Itamar Vieira Junior. 2019. Ed Todavia, SP

 

Historia de ficção que traz em suas raízes realidade nordestina de pessoas que viveram e construíram sua famílias na escravidão...e ainda o vivem, nos interiores das veias do Brasil.

 

“De loucura meu pai entendia, assim diziam, porque ele mesmo já havia caído louco num período remoto de sua vida. Os curadores serviam para restituir a saúde do corpo e do espírito aos doentes, era o que sabíamos desde o nascimento. O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartada do próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida na mata” (39).

“Sem a comunicação era como se nos silenciássemos mutuamente. Era silenciar o que tínhamos de mais íntimo entre nós. Sem poder me tocar, ela não poderia sentir a vibração da respiração em meu corpo. Sem poder lhe tocar, não poderia sentir a velocidade com que o crio de sangue corria em suas veias. Não poderia saber, a partir da sua agitação interior, seus humores, se bravos ou mansos. Não poderia olhar para meus olhos e perceber, apenas com o exame de meus movimentos, o que intencionava” (52-53).

“Os objetos, os xaropes de raízes, as rezas, as brincadeiras, os encantos que domavam seus corpos, tudo era parte da paisagem do mundo em que crescíamos. Mas a transformação da mulher hesitante, que vinha na estrada em preces por misericórdia e bem-aventurança, na força que se antepunha à perturbação de uma grávida transtornada pelas dores, e talvez por espíritos que desconhecíamos, era um milagre de energia“ (59).

“A distancia me protegia das bênçãos ou infortúnios, era o que esperava. Mas também não havia sido o acaso que me trouxera aquela mensagem” (83).

“...me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e de volta, e aprendia sobre as ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Aprendia que tudo estava em movimento – bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas. Meu pai olhava para mim e dizia: ‘o vento não sopra, ele é a própria viração”, e tudo aquilo fazia sentido. ‘Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida’, ele tentava me ensinar. Atento ao movimento dos animais, dos insetos, das plantas, alumbrava meu horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza havia lhe dado” (99).

“Meu pai, quando encontrava um problema na roça. Se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração” (100).

“”...era algo bom como as asas frágeis se movendo em meu corpo. Agora eu era uma fruta amadurecida convidando os pássaros a me bicarem...” (108).

“...deixei meu coração aquietar. Trabalhar a terra tinha desses sentimentos bons e amansar o peito, de serenar os pensamentos ruins que me cercavam” (121).

“...mas o perdão aflorava da benção que poderia ser o retorno de alguém de qual somos parte” (131).

“Sabia que, mesmo depois de muitos anos, carregaria aquela vergonha por ter sido ingênua, por ter me deixado encantar por suas cortesias, lábias que não era diferente da de muitos homens que levavam mulheres da casa de seus pais para lhes servirem de escravas. Para depois infernizarem seus dias, baterem até tirar sangue ou a vida, deixando rastro de ódio em seus corpos. Para reclamarem da comida, da limpeza, dos filhos mal criados, do tempo, da casa de paredes que se desfaziam. Para nos apresentarem ao inferno que pode ser a vida de uma mulher” (136).

O sofrer vinham das coisas que nem sempre davam certo, mas fazia sentir viva e unida, de alguma forma, a todos os trabalhadores que padeciam dos mesmos desfavorecimentos” (141).

“Via como um encanto uma casa nascer da própria terra, do mesmo barro em que, se lançássemos sementes, veríamos brotar o alimento. Quantas vezes havia visto aquele ritual de construir e desmanchar casas, e ainda me maravilhava ao ver se levantar as paredes que seriam nosso abrigo” (142-143).

“Mostrava as marcas do corpo, as que pareciam estar curadas, as que não curaram e as daquele instante. Sua raiva dizia muito das dores da alma – e sobre estas ela não falou -, aquelas que demoram a curar, as que no meio das lembranças precisamos afastar com num gesto de negação para que não se abata sobre nós o desanimo” (150).

“Quanto gente foi adentrando na solidão de meu rancho e foi dizendo que era uma roça bonita, que era maior e mais bem cuidada que a roça de muitos homens? Se admiravam quando viam que eu trabalhava sozinha. Com os olhos mediam meu corpo de cima a baixo, se pudessem me fariam disputar uma queda de braço com os homens, só para saber se a força para revirar a terra, para trabalhar o chão, vinha dele mesmo. Para ter certeza de que não era da força dos encantados em que o povo acreditava” (152).

“E o interior de uma casa era tudo que tínhamos. Guardava segredos que nunca tínhamos revelados. Guardava segredos que eram parte do que todos nós éramos naquelas paragens” (159).

“Mas nada parecia tira-lo do desligamento do mundo, cada dia um gesto a menos” (161).

“Foi a nossa valência poder se adaptar, poder construir essa irmandade, mesmo sendo alvos da vigilância dos que queriam nos enfraquecer” (178-179).

“O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa. (...) Mas para a gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada” (185).

“Nasceram ervas e flores minúsculas em meio à umidade que surgia como o orvalho e com a chuva que caia quando era da vontade dos santos. Fiquei atenta a tudo o que acontecia, sabia que nada retornaria. Olhei com certo encantamento o tempo caminhando, indomável como um cavalo bravio” (195).

“Nos momentos de forte emoção, meu horizonte se embota, transbordo para os lados, não consigo reunir o que me compõe. (...) aos poucos vão desaprendendo, porque há muita mudança na vida de todos” (206).

“Não iriam ceder à violência do momento e agir de forma irresponsável para pôr em risco seus sonhos e perderem de vez a batalha. Uma voz se levantou para dizer que era preciso acalmar os ânimos, embora estivessem se sentindo em pedaços pelo que tinha acontecido. Outra exortou por temperança, para que não deixassem o ódio falar mais alto” (213).

“Nessa jornada percebeu que há vida além da Água Negra não era muito diferente no que se referia à exploração. Mas havia Severo, e os sonhos, e tudo que construíram juntos. Havia dificuldades e desentendimentos, mas havia, antes de qualquer coisa, afetos que ela mesmo não poderia definir. Afetos que envolviam suas historias e todas as coisas que apreendiam, sobre si e sobre sua gente. Como nessa jornada passaram a amar seu lugar” (214-215)!

“Quando pode compreender o que lhe aconteceu, se perguntou: Por que sempre queremos as coisas que parecem estar mais distantes de nós? (...) A mata a fez forte e sensível, ainda menina, para reconhecer o movimento do mundo. Uma vez escutou que ‘o vento não sopra, é o próprio sopro” (245).

A terra era seu tesouro, parte do seu corpo, algo muito intimo (...). Não sabia como a irmã pode morar naquela desordem de carros, casas e gente. Para ter qualquer coisa precisava de dinheiro, qualquer coisa. Na terra tinha o que colher ao alcance das mãos. Se a seca ou a cheia levasse, comia-se o que sobrava. Comia a farinha de mandioca que faziam ou colhia as sementes de jatobá para preparar o beiju. Na cidade não havia terra para revirar, para sentir a ventura, a umidade avisando que a chuva estava por chegar” (246).

“E os sons, os sons dos animais, das folhas ao vento, do rio correndo, os sons ecoavam perenes em seu interior. Fosse nas tarefas do dia ou no sono leve da noite. Então sentiu que desde sempre o som do mundo havia sido a sua voz” (248).

Cada mulher sabe a força da natureza que abriga na torrente que flui de sua vida” (260).

“Sobre a Terra há de viver sempre o mais forte” (262).

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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